Revista de filosofía

O messias à porta? Estado de exceção na era do coronavírus

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Resumo

Neste artigo, pretendo tecer alguns comentários sobre a pandemia mundial causada pelo vírus Sars-Cov-2 a partir das considerações sobre o estado de exceção, de Carl Schmitt a Giorgio Agamben. Em um primeiro momento, acompanho as leituras de Agamben acerca da exceção constitutiva do ordenamento jurídico-normativo para, em seguida, refletir sobre as medidas tomadas pelos atuais governos para a contenção da pandemia. Minha hipótese é de que, apesar de controverso, o primeiro texto publicado por Agamben, “A invenção de uma epidemia”, implica importantes reflexões sobre os efeitos políticos e sociais decorrentes das medidas de exceção atualmente levadas a cabo.

Palavras-chave: COVID-19, pandemia, exceção, política, Agamben, Schmitt.

 

Resumen

En este artículo pretendo tejer comentários sobre la pandemia mundial causada por el vírus Sars-Cov-2 a partir de las consideraciones sobre el Estado de Excepción, de Carl Schmitt a Giorgio Agamben. En un primer momento, acompaño las lecturas de Agamben acerca de la excepción constitutiva del ordenamiento jurídico-normativo para, en seguida, reflexionar sobre las medidas tomadas por los gobiernos actuales para contener la pandemia. Mi hipótesis es que, apesar de ser controverso, el primer texto publicado por Agamben, “La invención de una epidemia”, implica importantes reflexiones sobre los efectos políticos y sociales que se despliegan de las medidas de excepción actualmente realizadas. 

Palabras clave: COVID-19, pandemia, excepción, política, Agamben, Schmitt.

 

Exceção como paradigma de governo

Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição [In der Ausnahme durchbricht die Kraft des wirklichen Lebens die Kruste einer in Wiederholung erstarrten Mechanik][1]

Essa bela frase, extremamente poética, foi escrita não por um poeta, mas por um jurista. Em “Definição de soberania”, primeiro ensaio de Teologia Política (1922), Carl Schmitt procura pensar o pressuposto do ordenamento jurídico-normativo. Para ele, conceber uma norma hipotética como o fundamento da normatividade jurídica somente escamoteia o verdadeiro fundamento de validade do ordenamento jurídico-normativo: a exceção. Como pode uma norma fundamentar as demais normas? No limite, uma norma não pode ser o fundamento último das demais normas, motivo pelo qual, em suas palavras “a exceção é mais interessante que o caso normal. O normal nada prova, a exceção prova tudo, ela não só confirma a regra, mas a própria regra vive da exceção”.[2]

Em sua crítica à enfraquecida República de Weimar e ao sistema parlamentarista, Schmitt pretende questionar o pressuposto do ordenamento jurídico, essa espécie de axioma do ordenamento. Em última instância, o fundamento de validade de uma norma não reside em si mesma, mas em uma decisão, e essa decisão é aquela acerca do estado de exceção. O portador da decisão é o soberano. Ao afirmar que a norma vive da exceção e que soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção, Schmitt insere a exceção no núcleo do ordenamento jurídico a partir da decisão soberana. Isso quer dizer que no ordenamento jurídico há um elemento anômico, que aparece quando há a suspensão total da eficácia da ordem normativa vigente.

“No caso de exceção, o Estado suspende o direito em função de um, por assim dizer, direito à autopreservação”.[3] Schmitt nos fornece como exemplo o artigo 48 da Constituição de Weimar em que há previsão de declaração do estado de exceção pelo presidente (Reichpräsident), ainda que sob o controle do parlamento, que, por sua vez, pode exigir a suspensão do estado de exceção a qualquer momento. No parágrafo segundo da Constituição de Weimar, pode-se ler: “caso a segurança e a ordem públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias a seu restabelecimento com o auxílio […] de força armada”.[4] Para esse fim, o presidente do Reich pode suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais.

Esse artigo, na concepção de Schmitt, seria sintoma da tentativa de controlar a exceção constitutiva do ordenamento jurídico, escamoteando seu fundamento violento. Essa tentativa de regular a decisão soberana sobre o estado de exceção por meio de uma distribuição das competências e do controle mútuo entre diferentes instâncias, característica do Estado de direito, mostra sua fragilidade quando, justamente a partir da brecha criada pelo artigo 48, em 1933, Hitler suspende a Constituição sem jamais empenhar-se em promulgar outra. A frase de Schmitt segundo a qual “o Estado continua existindo, enquanto o direito recua”[5] cumpre um papel quase premonitório, enquanto o diagnóstico de Walter Benjamin, alguns anos depois, segundo o qual “o estado de exceção em que vivemos é a regra”[6] não poderia ser mais preciso.

Se recorro à teoria da soberania schmittiana é para mostrar suas reverberações no presente. É o que faz o filósofo italiano Giorgio Agamben pelo menos desde 1995, ano de publicação de seu Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua, livro que inaugura a tetralogia Homo Sacer. Em sua releitura de Schmitt, Agamben pensa a exceção como paradigma de governo presente em nossas democracias contemporâneas. Ainda que, para o jurista, “nem toda atribuição excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial [seja] um Estado de exceção”,[7] para o filósofo, medidas excepcionais funcionam nas democracias contemporâneas como paradigma de governo.[8]

À diferença de Schmitt, Agamben concebe a decisão soberana não somente como um conceito geral da teoria do Estado, mas também como elemento presente na microfísica do poder de nossas democracias contemporâneas. É o caso, por exemplo, dos chamados conceitos jurídicos indeterminados, tais como “ordem pública” e “paz social”, ou seja, conceitos que carecem de conteúdo determinado. No caso brasileiro, por exemplo, no artigo 136 da Constituição Federal de 1988, a previsão de decretação de estado de defesa pelo presidente tem por objetivo preservar ou restabelecer a “ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.[9] Tanto “ordem pública” como “paz social” são conceitos vazios que ganham conteúdo a partir de uma determinada interpretação. É a partir desses conceitos que, na Constituição de 1988, se dá a restrição aos direitos fundamentais, tais como reunião pública, sigilo de correspondência e sigilo de comunicação telegráfica e telefônica. Naquele momento, ainda não fazíamos ideia do que seria a vigilância digital do século XXI. Nos artigos 137 e 138, que dispõem sobre a decretação do estado de sítio, encontramos os mesmos conceitos jurídicos indeterminados, como “comoção de grave repercussão”, a partir dos quais se dão graves consequências, como a “suspensão de garantias constitucionais”.

 

Exceção e pandemia

Para Agamben, é dessa maneira que a exceção constitui a regra. Não é de espantar, portanto, que em 26 de fevereiro de 2020, no início da ainda chamada “epidemia”, Agamben tenha pensado as medidas tomadas pelo governo italiano para contê-la como “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas”.[10] A teoria que o filósofo vinha desenvolvendo desde a década de 1990 sobre o estado de exceção como paradigma de governo parecia ter uma comprovação histórica evidente e atualíssima. Em “A invenção de uma epidemia”, Agamben chega a comparar a doença causada pelo vírus Sars-Cov-2 com uma gripe normal, baseando-se na então declaração do Conselho Nacional de Pesquisa (CNS) italiano. Diante da baixa letalidade do vírus e dos sintomas leves e moderados que por ele seriam causados, o decreto-lei aprovado pelo governo “por razões de higiene e segurança pública” seria, segundo o filósofo, desproporcional.[11] Por meio de conceitos indeterminados tais como “higiene” e “segurança pública” sérias limitações de liberdade podem ocorrer, perpetuando um círculo vicioso em que “a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos, que agora intervém para satisfazê-lo”.[12]

O texto causou controvérsia. Houve um alvoroço nas redes sociais com respostas de Jean-Luc Nancy, dentre outros.[13] A comparação entre o coronavírus e uma mera gripe assim como a acusação de promover um clima de pânico por parte da mídia poderiam gerar algumas aproximações entre o texto do filósofo italiano e o pronunciamento nacional do dia 24 de março de 2020 do atual presidente do Brasil. Se na introdução de seu Homo Sacer, I.I Agamben já ressaltava a zona de indiscernibilidade em que direita e esquerda, na contemporaneidade, se encontram,[14] não deixam de causar espécie as possíveis aproximações entre o filósofo que pretende repensar a política ocidental e o mais conservador e inepto dos governantes, para dizer o mínimo.

No entanto, é imprescindível lembrar que o texto de Agamben é datado de 26 de fevereiro, momento em que ainda não havia uma declaração oficial de pandemia e em que pouco se sabia sobre o vírus. Não se pode dizer o mesmo acerca do pronunciamento do atual presidente do Brasil. Para aqueles que insistem nessa aproximação, diria que contemporizar é, no mínimo, essencial. A problematização do distanciamento social proposta por Agamben não tem absolutamente nada a ver com seus efeitos nocivos para a economia, como quer o atual presidente do Brasil, que insiste em descumprir as medidas de seu próprio ministro da Saúde, saindo às ruas para cumprimentar apoiadores do governo – enquanto escrevia este artigo, o ministro foi exonerado. Ao contrário, para Agamben, a questão é saber o que seria um ordenamento político fundado sobre o distanciamento social. Ou seja, a questão é saber quais são as implicações políticas futuras que a pandemia como fenômeno social pode acarretar.[15]

Por diversas vezes, Agamben afirma que não escreve para o futuro, mas para o passado.[16] Encontrar no passado o que permanece como esquecimento é o trabalho do arqueólogo – aquele que sabe que a possibilidade vem do passado, e não do presente. É o que faz o próprio Agamben ao investigar formas de vida que caíram em esquecimento, mas que talvez pudessem nos dizer algo sobre a possibilidade de uma organização social não mais calcada em normas jurídicas, em sentido estrito, como a vida em comum nos monastérios, descrita em Altíssima Pobreza. Dar potência ao passado, ou “escovar a história a contrapelo”,[17] como nos diz Benjamin, implica o gesto filosófico por excelência: mostrar que nenhum evento histórico é irreversível, que nossas instituições e modos de vida não são um destino, que, em se tratando do humano, não há nada de inexorável e determinado – à exceção da morte, que se dá sempre como antecipação. É no que poderia não ter sido, ou no que pode não ser, que a filosofia labora, ou seja, na exposição da potência e do agenciamento humanos. Disso decorre sua estranheza, sua peculiaridade, à qual também gostaria de associar a estranheza provocada pelo texto de Agamben, inclusive para mim.

Em “O que é o contemporâneo?”, o filósofo situa sua contemporaneidade em uma desconexão e em uma dissociação em relação ao presente. Seguindo a via aberta por Nietzsche em suas Considerações intempestivas, ser verdadeiramente contemporâneo, para Agamben, significa não coincidir perfeitamente com o tempo em que se vive, significa não estar adequado às suas pretensões. Mas é justamente por meio desse deslocamento e desse anacronismo em relação ao presente que ele é mais capaz que os demais de perceber e apreender seu tempo. Contemporâneo é aquele que está dentro e fora de seu tempo, é aquele que adere a este ao mesmo tempo em que dele toma distâncias. É de uma experiência singular do tempo que se trata na contemporaneidade. Para exemplificá-la, Agamben – dessa vez seguindo a via aberta por Benjamin – cita a relação que a moda estabelece com o passado. A moda reatualiza e cita o passado, motivo pelo qual Benjamin escreve que ela é um Tigersprung, um salto de tigre em direção ao passado.[18] O estar na moda, assim como a contemporaneidade, comporta uma certa dissociação, “em que sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte do seu fora, um matiz de démodé”.[19]

Mas se Agamben escreve para o passado, não para o presente e nem para o futuro, “A invenção de uma epidemia” parece conter elementos quase premonitórios. Para aqueles que acharam que Agamben estava exagerando em seu diagnóstico, o artigo “Coronavírus de hoje e o mundo de amanhã” do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han nos mostra com perplexidade como medidas tomadas por alguns governos orientais não somente são extremamente “frenéticas e irracionais” como também colocam a relação entre poder soberano e vida em outra dimensão.[20] Talvez o mais assustador consista no fato de que, apesar de frenéticas e irracionais, essas medidas conseguem conter o vírus de maneira que não conseguimos fazê-lo no mundo ocidental. A frase de Hölderlin, diversas vezes citada por Agamben, segundo a qual “onde está o perigo está também o que salva”,[21] ganha um sentido completamente outro.

Radicado em Berlim, Han, leitor de Agamben, mostra como nos países ocidentais, e sobretudo, na Europa Ocidental, o fechamento de fronteiras como medida de contenção do vírus, além de ser uma expressão desesperada da soberania, tem fracassado. É Carl Schmitt quem nos diz que a apropriação ou a conquista da terra é o ato jurídico fundamental a partir do qual a própria criação do âmbito jurídico-normativo se dá. Ao tomar a terra (Landnahme) e nomeá-la (Nahme é a antiga grafia do termo Name, “nome”) o soberano estabelece fronteiras que distinguem entre dentro e fora, amigo e inimigo, cidadão e estrangeiro.[22] A tomada (do alemão nehmen: “tomar”, “apropriar”) da terra é um ato de exceção na medida em que, ao mesmo tempo em que estabelece fronteiras, captura fora (nehme aus, daí Ausnahme, “exceção”) os não nascidos no território estabelecido – donde a intrínseca relação entre lugar de nascimento e Estado-nação. Mas a pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 parece levar a relação entre soberania e estabelecimento de fronteiras a outro patamar. Na medida em que o vírus é um “inimigo invisível”, cada corpo humano, vivo ou morto, representa perigo, como bem descreve Agamben em “Contágio”.[23]

A fronteira passa a ser o corpo de cada um, objeto do poder estatal. O excelente texto de Paul B. Preciado, “Aprendendo com o vírus”, trata bem dessa ideia, sobretudo da função da máscara como nova fronteira. As políticas de fronteiras e medidas de confinamento tomadas pelos países ocidentais para manter fora o estrangeiro (migrantes e refugiados) voltam-se agora para cada corpo, individualmente. “E a borda não para de fechar, ela empurra até ficar cada vez mais perto do seu corpo. Calais explode na sua cara agora. A nova fronteira é a máscara”,[24] escreve Preciado. No corpo vivo, a máscara, a epiderme passam a ser a nova fronteira. Nossas casas passam a ser o limbo do centro de retenção em que antes o outro, o estrangeiro, era colocado. No corpo morto, o caixão fechado é a fronteira que nos impede de cumprir os ritos fúnebres, de dizer adeus àquele corpo uma última vez.

É essa mudança de paradigma, a passagem das fronteiras estatais para as fronteiras-corpos, que faz com que as medidas tomadas por países como Japão, Coreia do Sul, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura, sejam bem-sucedidas. Para além do que Han chama de uma mentalidade autoritária provinda da tradição cultural desses países, somada a uma compreensão coletivista de sociedade, a aposta em uma vigilância digital constante de cada corpo é, digamos, a “chave para o sucesso”. Na Coreia do Sul, a partir das imagens de câmeras de segurança assim como de dados coletados de telefones celulares, é possível criar um perfil de movimento de cada infectado. Até mesmo casos amorosos podem ser revelados, nos diz Han. Há pessoas chamadas “trackers” no Ministério de Saúde coreano, responsáveis por analisar o material filmado, completar o perfil de cada infectado e localizar as pessoas que estiveram em sua presença.

Na China, os fornecedores de telefonia celular e internet compartilham os dados de seus clientes com o Ministério da Saúde e com os serviços de segurança. O Estado sabe de cada passo de cada um de seus súditos. Caso contrário, envia drones para alarmar sobre a pandemia e para pedir o retorno à casa.[25] Para sair do continente asiático, na Tunísia, há robôs responsáveis por analisar o documento de permissão que os cidadãos devem portar, ao sair às ruas.[26] Para aqueles que consideram tais exemplos distantes de nossa realidade latino-americana, duas notícias atestam o contrário: no Brasil também há previsão de fornecimento de dados de mobilidade ao governo por parte das operadoras de telefonia celular,[27] e na cidade do Rio de Janeiro, drones já tem sido usados para evitar aglomerações. Mas no lugar de evitar aglomerações, os drones tem justamente aglomerado curiosos[28] – evento digno de uma peça de Samuel Beckett. Certamente muito pior foi a defesa da construção de “campos de concentração” para doentes que, nós, brasileiros, tivemos que assistir em rede nacional em um canal televisivo simpatizante do atual presidente.[29]

À luz desses exemplos, o primeiro texto de Agamben, “A invenção de uma epidemia”, não chega a ser tão absurdo como parecia à primeira vista. As medidas tomadas por diversos governos parecem levar a biopolítica ao paroxismo. Por um lado, tanto essas medidas como o isolamento social, em maior ou menor grau, são eficazes no que se refere ao achatamento da curva de infectados e de óbitos. Ao que sabemos, o maior perigo do vírus Sars-Cov-2 não é a taxa de letalidade, mas a velocidade do contágio, que tem levado os sistemas de saúde ao colapso. Por outro lado, parece-me importante refletir sobre os efeitos políticos e sociais decorrentes da emergência sanitária. Importante e, sobretudo, extremamente difícil e arriscado, pois pensar o presente significa estar ao mesmo tempo dentro e fora dele, significa: ser contemporâneo. Pode ser que, parafraseando Hölderlin, a salvação atual seja de fato o perigo porvir. Em todo caso, é certo que estamos diante de uma mudança radical de paradigmas, e possível que herdemos o “Estado policial digital”, ao estilo chinês, como indica Han. Pode ser que o mundo tal como o conhecemos nunca mais seja o mesmo…

No dia quinze de abril de 2020 foram notificadas (oficialmente) 204 mortes pelo vírus Sars-Cov-2 no Brasil, nosso atual recorde. No dia anterior, outra notícia preocupante: a economia global deve ter o pior desempenho desde a Grande Depressão.[30] Quatro anos após a crise econômica mundial de 1929, Hitler chegava ao poder na Alemanha. Não só na Alemanha, mas no mundo, houve o fortalecimento dos Estados que, hoje, chamamos de totalitários. No Brasil, à nossa porta, há hoje um senhor chamado “Messias”.

 

O messias à porta?

Foi David Hume quem, na história da filosofia, nos ensinou que a observação de um fenômeno repetitivo nos dá a falsa impressão de que ele sempre se repetirá. A pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde no dia 11 de março de 2020 nos coloca em uma situação difícil em relação à repetição cotidiana, e sobretudo, em relação à falsa impressão de que dormir e acordar todo o dia continuará sendo uma repetição garantida pela empiria. É certo que essa repetição nunca foi efetivamente garantida, mas talvez a suspensão da normalidade nos possibilite lidar de outro modo com a contingência, com a exceção. Ou, mais provavelmente, é possível que nos aproxime da precariedade de tantas vidas para as quais o dia seguinte jamais foi garantido, vidas que, por assim dizer, desde sempre habitaram uma “zona de exceção”.

Em um texto intitulado “Auréola”, Agamben narra a parábola sobre o reino messiânico contada por Benjamin a Ernst Bloch. Na tradição judaica, o tempo messiânico não deve ser confundido com o fim dos tempos, com o apocalipse, palavra comumente utilizada pela mídia para caracterizar a pandemia, como ressalta Agamben.[31] Ao contrário, o tempo messiânico consiste em uma transição entre o velho tempo e a eternidade, tempo de catastrófica mudança. Em “Auréola”, essa mudança catastrófica é definida como um pequeno deslocamento. O tempo messiânico não instaura um tempo totalmente outro, uma mudança radical, mas um outro modo de lidar com o que já era: “tudo será como agora, só um pouco diferente”,[32] afirma Agamben, lendo Benjamin.

O tempo messiânico interrompe a continuidade histórica, o tempo como progresso, e instaura um conceito de presente como tempo-de-agora (Jetztzeit).[33] Ele não implica um télos, um futuro, uma espera, mas, como diz Benjamin a seu amigo Gerschom Scholem: “o reino messiânico está sempre lá”.[34] O que vem já está sempre aqui. Por isso, não se trata de uma mudança catastrófica, mas de um pequeno deslocamento, de uma nova lida, de um novo uso, do mesmo. Em nosso tempo de agora, não é exagero dizer que a pandemia suspendeu o futuro. Nossos planos e projetos estão todos em suspensão. Estudos científicos conseguem prever um retorno à normalidade por volta de 2022.[35] Tudo é incerto. Para quem acredita em progresso e evolução histórica, este definitivamente não é o “tempo oportuno”. Em meio às notícias e ruídos, a repetição de todo dia deu lugar a vida de cada dia.

Nesse cenário, Judith Butler, em “O capitalismo tem seus limites”, nos leva a refletir sobre as consequências da pandemia no que se refere a questões como interdependência global, igualdade e nossas obrigações uns para com os outros. Em uma perspectiva mais otimista, se comparada a Agamben, Butler afirma que o vírus nos coloca em uma situação igualitária de precariedade. Pela forma como ataca, “o vírus mostra que a comunidade humana é igualmente precária”.[36] Ela é igualmente precária no sentido de que somente seres humanos podem fazer a experiência da possibilidade da impossibilidade da existência em geral, ou seja, da morte como antecipação, como escreve Heidegger. Se a morte é nossa possibilidade mais própria, talvez o vírus nos relembre daquela “força da vida real” (wirklich Leben) que rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição, como escreve Schmitt. Mas, sobretudo, talvez nos relembre que as distribuições desiguais de precariedade sobre os corpos – tais como indicadores de classe, raça, gênero – são dispositivos que podem, portanto, ser desativados.

Não tenho tanta certeza, como Slavoj Zizek, de que o coronavírus será um golpe no capitalismo ao estilo de Kill Bill. Nem de que possa reinventar o comunismo.[37] Mas considero a argumentação de Butler relevante. Se as fronteiras deixam de ser territoriais e voltam-se a cada corpo humano exibindo sua precariedade, seu ser-para-a-morte, não seria possível justamente que essa precariedade, constitutivamente humana, nos aproximasse? Ou, ao menos, que explicitasse a artificialidade dos mecanismos que atribuem menor ou maior valor a determinadas vidas? É possível uma comunidade humana, uma organização social, a partir do fato de que somos precários(as), ou com Agamben, de que somos falantes? Essas perguntas são fundamentais porque implicam a questão da potência. Houve momentos em que o sufrágio feminino teria sido impossível; a revolução de 1917, impossível; a abolição da escravidão, impossível. Se é no que poderia não ter sido, ou no que pode não ser que a filosofia labora, é preciso que o impossível, o impensável, possa se deixar pensar – apesar do senhor Messias às nossas portas.

 

Bibliografia  

  1. Agamben, Giorgio. “A invenção de uma epidemia”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 .
  2. “Auréola”. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
  3. “Contágio”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 .
  4. “Distanciamento social”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 .
  5. “Habitar e Construir”. In: (Org.) Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho, Juliana de Moraes. AGAMBiarra: escritos sobre a filosofia de Giorgio Agamben. Trad. Caio Paz, Isabela Pinho, Juliana de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Ape’ku, 2020, prelo.
  6. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
  7. “O estado de exceção como paradigma de governo”. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
  8. O homem sem conteúdo. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012.
  9. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Ed. Unichapecó, 2009.
  10. “Reflexões sobre a peste”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 .
  11. Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio (Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”). Jeanne Marie Gagnebin, Marcus Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.
  12. Butler, Judith. “O capitalismo tem seus limites”, em Rede Brasil atual (https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/), consultado em 17 de abril de 2020.
  13. Han, Byung Chul. “O coranavírus de hoje e o mundo de amanhã”, em Instituto Humanitas Unisinos(http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597343-o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han), consultado em 14 de abril de 2020.
  14. Preciado, Paul B. “Aprendendo del virus”, em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/), consultado em 17 de abril de 2020.
  15. Schmitt, Carl. “Definição de soberania”. Teologia Política. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996 [Politische Theologie. Berlim: Duncker und Humboldt, 1993].
  16. The nomos of the Earth in the international law of the jus publicum europaeum. Trad. G. L. Umen. New York: Telos Press, 2006.
  17. Zizek, Slavoj. “El coronavirus es um golpe al capitalismo a lo Kill Bill…”, em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/), consultado em 17 de abril de 2020.

 

Anotações

[1] Schmitt, Carl. “Definição de soberania”. Teologia Política. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 94.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem, p. 92.
[4] O artigo da Constituição de Weimar está disponível em:
http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-dos-estudantes-de-direito-da-unb/6a-edicao/artigo-48- (consultado em 17 de abril de 2020).
[5] Schmitt, CARL. “Definição de soberania”, p. 92.
[6] Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio (Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”). Trad. Jeanne Marie Gagnebin, Marcus Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 83.
[7] Schmitt, Carl. “Definição de soberania”, p. 92.
[8] Agamben, Giorgio. “O estado de exceção como paradigma de governo”. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 9 – 49.
[9] A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pode ser acessa no link: phttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm (consultado em 17/04/2020).
[10]Agamben, Giorgio. “A invenção de uma epidemia”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 [também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)]. Até o momento, Agamben escreveu seis curtos textos sobre a pandemia. Além do texto supracitado, há “Contágio” (11/03/2020); “Esclarecimentos” (17/03/2020); “Reflexões sobre a peste (27/03/2020); “Distanciamento social” (06/04/2020) e “Uma pergunta” (13/04/2020). Todos disponíveis em: https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Este e outros textos de filósofos contemporâneos sobre a pandemia podem ser encontrados no compilado Sopa de Wuhan, pensamento contemporâneo em tempos de pandemias, em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/), consultado em 17 de abril de 2020.
[14] Cf. Agamben, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 12.
[15]Agamben, Giorgio. “Distanciamento social”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 [também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)].
[16] Conferir, por exemplo, o texto “Habitar e construir”, cedido por Agamben para compor o livro AGAMBiarra: escritos sobre a filosofia de Giorgio Agamben (Org. Ana Carolina Martins, Caio Paz, Isabela Pinho, Juliana de Moraes, Ed. Ape’ku, 2020, prelo).
[17] Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história”, p. 70.
[18] Ibidem, p. 119.
[19] Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Ed. Unichapecó, 2009, p. 68.
[20] Cf. Han, Byung Chul. “O coranavírus de hoje e o mundo de amanhã”, em Instituto Humanitas Unisinos(http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597343-o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han), consultado em 14 de abril de 2020 [também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)].
[21] Hölderlin. Apud. Agamben, Giorgio. O homem sem conteúdo. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012, p. 166.
[22] Schmitt, Carl. The nomos of the Earth in the international law of the jus publicum europaeum. Trad. G. L. Umen. New York: Telos Press, 2006, p. 327, 328.
[23] Cf. Agamben, Giorgio. “Contágio”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 [também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)].
[24] Preciado, Paul B. “Aprendendo del virus”,”, em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/), consultado em 17 de abril de 2020.
[25] Vídeo disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3-eM4IM-PfY
[26] Vídeo disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FpJXIxNzhuk&feature=youtu.be
[27] Conferir notícia no link: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/02/coronavirus-governo-pode-usar-dados-de-celulares-para-localizar-aglomeracao-de-pessoas.ghtml
[28] Conferir notícia no link: https://oglobo.globo.com/rio/drone-da-prefeitura-usado-para-evitar-aglomeracoes-reune-curiosos-em-campo-grande-1-24376010
[29]Conferir notícia no link: https://telepadi.folha.uol.com.br/sbt-suspende-marcao-do-povo-apos-apresentador-sugerir-campo-de-concentracao-a-doentes/
[30]Informação disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/14/com-coronavirus-economia-global-deve-ter-pior-desempenho-desde-a-grande-depressao-diz-fmi.ghtml
[31] Agamben, Giorgio. “Reflexões sobre a peste”, em Quodlibet (https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben), consultado em 17 de abril de 2020 [ também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)].
[32] Id. “Auréola”. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 52.
[33] Cf. Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história”, p. 140.
[34] Ibidem.
[35] Conferir, por exemplo: https://exame.abril.com.br/ciencia/estudo-preve-que-havera-algum-tipo-de-quarentena-ate-2022/
[36]Butler, Judith. “O capitalismo tem seus limites”, em Rede Brasil atual (https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/), consultado em 17 de abril de 2020 [também em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/)].
[37] Zizek, Slavoj. ““El coronavirus es um golpe al capitalismo a lo Kill Bill…”,”, em Medionegro, imagénes y movimentos, (https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/), consultado em 17 de abril de 2020.