SANTY MITO, “INNOCENCE” (2017). FOTOGRAFÍA TOMADA DE HTTPS://WWW.TUMBEX.COM/SANTYMITO.TUMBLR/POSTS?PAGE=2&TAG=BODY%20ART
O eu cognescente é parcial em todas as suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro.[1]
Donna Haraway
Resumo
Este artigo[2] toma como central o tema da performatividade na obra da filósofa Judith Butler e tem como objetivo discutir os atravessamentos dessa questão na maneira como a autora vem sendo lida em diferentes campos disciplinares no Brasil. Analisa, ainda, as defasagens temporais das traduções de seus livros e elenca pesquisas que procuraram ir além do conceito de gênero, a fim de argumentar que não é possível dividir a obra da autora em duas partes, a primeira exclusivamente dedicada ao gênero e só a segunda voltada para temas da filosofia política. Todo debate sobre gênero é, desde sempre, político.[3]
Palavras chaves: Butler, performatividade, gênero, política, Brasil, interpretação.
Abstract
This article focuses on the performativity in the work of the philosopher Judith Butler and aims to discuss the cross-cutting of this issue in the way the author has been read in different disciplinary fields in Brazil. It also analyzes the temporal gaps of the translations of her books and studies research that sought to go beyond the concept of gender, in order to argue that it is not possible to divide the author’s work into two parts, the first exclusively dedicated to gender and only second, focused on themes of political philosophy. Every debate on gender has always been political.
Keywords: Butler, performance, gender, politics, Brazil, interpretation.
Este artigo tem como ponto de partida a consagrada expressão “saberes localizados”, que dá título ao trabalho de Donna Haraway,[4] a fim de performatizar o que considero uma de suas melhores afirmações: “O único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar particular”.[5] A escolha desse trecho é motivada pela minha principal intenção, produzir uma visão ampla da recepção da obra de Judith Butler no Brasil, desde a publicação, em 2003, de Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade,[6] a partir de um lugar muito particular, a minha participação nesse processo. Para tanto, quero entrelaçar a retomada de ideias que considero centrais na obra da autora com minha experiência de pesquisa, este último ponto servindo para lembrar que escrevo inspirada no argumento de Haraway: “[…] é na epistemologia das perspectivas parciais que está a possibilidade de uma avaliação crítica objetiva, firme e racional”.[7]
Contextos geográficos localizados
Gender Trouble foi publicado nos EUA em 1990 e reúne um conjunto de textos escritos nos anos anteriores à primeira edição. Entre as muitas questões daquele momento político-feminista, havia o enfrentamento das forças conservadoras, diagnosticadas por Susan Faludi (2001 [1991]), cujo trabalho expôs os discursos de volta ao fogão que dominavam a imprensa naquele momento, com narrativas pautadas pela ideia de que continuar em busca de objetivos de emancipação e liberdade estava sobrecarregando as mulheres.[8] Reportagens[9] e diferentes autores anunciavam o fim do feminismo, na esteira do fim da história, da queda do muro de Berlim, do colapso da União Soviética e no embalo de argumentos como o de Francis Fukuyama (1992), que comemorava a associação entre capitalismo e democracia liberal como a vitória do estilo de vida norte-americano. Havia nesse clima de “fim” a ideia subjacente de que as mulheres já haviam conquistado tudo que podiam ou precisavam,[10] Butler em vez de cair na armadilha desse debate, decide criar seus próprios problemas[11], propondo que o feminismo não fosse mais feito apenas em nome da mulher, o que deu margem num primeiro momento, a interpretações de que se tratava de mais uma defesa do fim do feminismo. Nada mais falso. Os movimentos feministas e as teorias feministas se renovaram a partir de percepções críticas como a de Butler, mas não apenas. Nesse ponto, acho importante relativizar a centralidade que muitos estudos brasileiros atribuíram ao pensamento de Butler, como se suas proposições não fizessem parte de ampla discussão em um campo teórico, e com interlocutoras/es que a antecedem e/ou a sucedem em contribuições e críticas. A ausência de percepção sobre esse entorno de pensamento contribui, mesmo nas pesquisas acadêmicas, para fazer parecer que ela, sozinha, teria inventando uma concepção inédita do conceito de gênero. De novo, nada mais falso. Butler não pensou sozinha nem fora de contexto.
Em Gender Trouble, Butler estava propondo, entre tantas outras coisas, uma revisão do sistema sexo/gênero, apresentado pela antropóloga Gayle Rubin (2007 [1975]), como crítica à centralidade do tabu do incesto nas estruturas elementares do parentesco; discutindo os limites do feminismo existencialista de Simone de Beauvoir —no rastro de suas pesquisas anteriores sobre o existencialismo francês—; dialogando com alguns aspectos de teorias psicanalíticas, interpelando Freud, Lacan e alguns aspectos do pensamento de Michel Foucault. Como pano de fundo de todas essas discussões há uma questão inaugural na sua filosofia, enunciada assim: “Todo o meu trabalho está inscrito em torno de um conjunto de perguntas hegelianas: qual é a relação entre desejo e reconhecimento e a que se deve que a constituição do sujeito suponha uma relação radical e constitutiva com a alteridade?”[12] O trecho é de 1998, está no prefácio da segunda edição de sua tese de doutorado e participa, no meu entendimento, do seu empenho em dialogar com seus críticos.
O arco de influências na filosofia de Butler é amplo, a figura abaixo ilustra as interlocuções mais importantes, e considera Hegel um autor permanente.
TABELA 1
Recupero a centralidade do tema do sujeito e da importância de Hegel na obra de Butler por considerar que é um dos temas que ficou assombrado – ou à sombra – das primeiras leituras no Brasil. Em 1994, quatro anos depois de publicar Gender Trouble e um ano depois de publicar Bodies that matter, ela concede uma entrevista que, para mim, é marcante para observar a diferença entre o que ela está pensando e como ela será lida aqui: “Gostaria de dizer que sou uma teórica feminista antes de ser uma teórica queer ou uma teórica gay ou uma teórica lésbica. Meus compromissos com o feminismo são provavelmente os mais originais. Gender Trouble foi uma crítica à heterossexualidade compulsória dentro do feminismo, e as feministas eram as minhas interlocutoras. No momento em que escrevi o livro não havia estudos gays e lésbicos tal qual eu os compreendo”.[13]
A entrevista é de 1994 e a crítica de Butler à heterossexualidade compulsória dentro do feminismo tinha como objetivo chamar atenção para as restrições do conceito de gênero exigia, a nós, feministas, pensar apenas em termos de uma divisão dicotômica entre masculino e feminino. É um exemplo de como, no Brasil do início do século XXI, num contexto específico dos estudos de gênero, se estabeleceram disputas entre formas de leitura, como se os problemas de gênero apontados por Butler indicassem uma substituição da teoria feminista pela teoria queer.[14]
No movimento de crítica à heterossexualidade compulsória, Butler retorna ao pensamento de Simone de Beauvoir para tensionar a noção de gênero como construção social e sexo como dado biológico.
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, como havia escrito Beauvoir (2009 [1949]), supõe, na concepção de Butler, uma separação perfeita entre nascer e devir, entre natureza e cultura, entre real e simbólico. Retomando ao tema do sujeito que lhe é caro, Butler postula a inexistência de uma substância que garanta a um corpo biológico marcado pelas características de fêmea ao “[…] tornar-se mulher”.[15]
Apesar de ter sido escrito a partir de uma interlocução com diferentes teorias feministas, quando Gender Trouble foi traduzido no Brasil, em 2003, havia uma emergência de estudos no campo da sexualidade engajado em deslocar a centralidade do conceito de gênero —entendido como restrito a críticas ao binarismo e à hierarquia de gênero nas relações sociais— para o que então ela chamava de heterossexualidade compulsória.[16] A coincidência entre a edição de Problemas de gênero e a emergência dos estudos sobre gênero e sexualidade promoveu um encontro entre a desconstrução que Butler empreende em relação à política identitária e o fortalecimento do termo queer como instrumento de pensar a heterossexualidade compulsória e como uma nova forma de política identitária, em que pese o fato de que aos poucos foi-se também produzindo massa crítica[17] em relação ao termo e perdendo força como categoria identitária.[18]
Lembro-me de um diálogo com um colega da Antropologia que estudava homossexualidade. Era 2005 e eu me preparava para ingressar no mestrado, em que aproximei o feminismo de matriz pós-estruturalista —aí incluída Judith Butler— com as proposições do filósofo Jacques Derrida. Localizava nos dois autores um pensamento crítico ao humanismo e uma tentativa de pensar para além do sujeito ontológico, fechado numa ipseidade; ambos movidos, cada um a seu modo, pela pergunta “quem, nós?” com a qual Derrida encerra uma de suas mais célebres críticas ao humanismo.[19] Quando o antropólogo me perguntou o que era a minha pesquisa, simplifiquei a resposta: “A desconstrução da identidade”. Ao que ele retrucou: “Mas a identidade nunca esteve tão em alta”. O espanto foi mútuo, é verdade, por isso acho sempre importante recuperar o subtítulo de Gender trouble: “feminism and the subversion of identity”, aqui traduzido por “feminismo e subversão da identidade”.[20]
SANTY MITO, “AFECTOS Y CUERPOS” (2017). FOTOGRAFÍA TOMADA DE HTTPS://WWW.TUMBEX.COM/SANTYMITO.TUMBLR/POSTS?PAGE=2&TAG=BODY%20ART
Meu interesse em relação à política identitária vinha da percepção de que havia se esgotado, nos ativismos feministas, um tipo de forma de fazer política que falava em nome das mulheres (o plural já era um deslocamento em relação à ideia da mulher universal). Subscrevi, no mestrado[21] e no doutorado,[22] a posição de Butler, concordando com ela no argumento de que a categoria “mulheres” é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder às quais nós, feministas, dirigimos demandas de emancipação e conquista de direitos. Por esse caminho, Butler aponta um paradoxo com o qual venho trabalhando desde então: primeiro, as mulheres precisam adentrar o espaço político da representação e, nele, serem constrangidas a uma categoria identitária unívoca; em seguida, é preciso se valer desta categoria identitária para reivindicar direitos, que já serão limitados por estarem destinados a atender apenas aqueles sujeitos submetidos à representação cabível na categoria mulher.
Um aspecto que considero crucial na tradução de Gender Trouble é o fato de Problemas de gênero ter integrado a coleção “Sujeito e história”, coordenada pelo psicanalista Joel Birman, que assina também a re- visão técnica do texto. Não apenas por essa razão, mas também pelas críticas às concepções de feminino e masculino em Jacques Lacan e à leitura do complexo de Édipo em Freud, Butler começou a ser estudada no campo psicanalítico, e muitas vezes recusada com dois argumentos, no mínimo, simplistas: 1) Butler estaria considerando apenas as proposições iniciais do pensamento de Lacan, quando ele estabelece a diferença sexual a partir de duas posições desejantes que, embora não necessariamente excludentes nem determinadas pela biologia, são apenas duas, permanecem assimétricas e estão referidas à centralidade do falo: a posição masculina é de quem tem o falo e a posição feminina de quem é o falo. Butler ignoraria, no entanto, desdobramentos posteriores do pensamento de Lacan, em que a diferença sexual passa a ser definida partir de múltiplas posições de gozo; 2) gênero não é um conceito pertinente à teoria psicanalítica, que trabalha com os conceitos de feminino e feminilidade.[23] Pelo menos por esses dois caminhos a conversa entre Butler e a teoria psicanalítica no Brasil ficou atravessada[24] e faço questão de situar esse atravessamento no campo brasileiro para destacar sua interlocução com a psicanálise na França e sua participação na Sociedade Internacional de Filosofia e Psicanálise (SIPP).[25]
Revisitando a performatividade de gênero
Interpretações e leituras são resultado também de disputas epistemológicas. Nesse artigo, não estou indiferente nem neutra em relação a esses embates. A formação e delimitação de campos teóricos produzem ganhos políticos e seus consequentes desdobramentos, como obtenção de recursos para projetos, capital social e reconhecimento público. Uma das noções em disputa na obra de Butler é a de performatividade (de gênero). Considero que o gesto mais importante desta proposição não é, como muitos de seus leitores atribuem, a possibilidade de criação de pelo menos 32 gêneros na legislação de Nova York, embora isso de fato pareça ter vencido em algum momento a batalha epistemológica acerca das razões estudar Judith Butler. Sustento meu interesse na sua filosofia em função do meu entendimento de que a performatividade (de gênero) promove dois movimentos: o primeiro, o de que o gênero não se produz a partir de uma essência ou substância, como já indicado no debate dela com a obra de Beauvoir. O segundo ponto, que me parece ainda mais decisivo, é o esvaziamento da fundamentação das normas (de gênero), que passam a ser compreendidas como convenções vazias de sentido, como operações de poder sobre os corpos, como biopolítica —para usar o termo foucaultiano— e como formas de controle da reprodução da mão de obra para o bom funcionamento do sistema capitalista.
Desde que foi proposta pela primeira vez, a noção de performatividade de gênero produziu pelo menos dois efeitos: o primeiro e mais evidente, uma imensa quantidade de críticas à proposição de Butler que, como já mencionado, foram sendo desdobradas nos livros subsequentes a Gender Trouble; o segundo, também de fácil localização, um grande esforço por parte dela em continuar pensando a partir da categoria da performatividade, se valendo das críticas como motor para desdobrar suas proposições iniciais. Aqui, chega então o momento de me arriscar a dizer que, em Butler, o gesto mais importante da noção de performatividade (de gênero) é o esvaziamento de toda e qualquer fundamentação das normas (de gênero), as escritas e não escritas, que passam a ser compreendidas como convenções vazias de sentido, como operações de poder sobre os corpos.
Há pelo menos quatro fortes críticas à proposição de performatividade de gênero em Butler que gostaria de expor para refutar. A primeira crítica estaria no entendimento da perfomatividade de gênero como um ato só acessível à figura da drag queen. Aqui, me parece fácil argumentar que a drag queen é apenas um paradigma[26] para expor a artificialidade da ligação entre sexo anatômico biológico e identidade de gênero. Trata-se não de fazer com que a identidade de gênero seja teatral, mas de evidenciar a arbitrariedade de uma ligação tomada como substantiva durante algumas décadas da segunda onda feminista. Ao performatizar um gênero feminino, a drag queen performatiza a representação de todos os elementos tidos como femininos, e ao mesmo tempo possíveis de serem artificializados em qualquer corpo.
A segunda crítica compreendeu a performatividade de gênero como mero ato de vontade do indivíduo liberal, e portanto sem potência de transformação política. Esta crítica está atrelada à ideia de que as normas seriam tão fixas e imutáveis que não há nada que se possa fazer diante delas. A proposta de Butler não poderia ser mais contrária a essa. Considero que intenção da autora não é apontar para uma liberdade absoluta em relação a qualquer tipo de norma, mas bem ao contrário, apontar para o quanto toda norma depende da sua repetição, ou dito de outro modo, que é a repetição constante da norma pelos nossos corpos que fundamenta a própria norma. É quando todas/os/es nós repetimos gestos tidos como femininos ou masculinos que fundamentamos e ao mesmo tempo transgredimos as normas de gênero, indicando que a estrutura da norma comporta a sua transgressão ali mesmo onde depende da sua repetição. É em função da performatividade (de gênero) que tenho arriscado uma hipótese, a de que foi por esse caminho que Butler localizou a relação do sujeito com a norma numa dialética, mantendo a tensão que muitas feministas antes dela pretenderam solucionar. Perfomatividade como movimento permanente de manutenção e subversão das normas, conserva e ao mesmo tempo supera as regras que estabelece. Tenho me arriscado a chamar de Aufhebung[27] hegeliana à moda de Butler, ou a différance, se eu quiser falar com o vocabulário de Derrida. Quando proponho pensar a performatividade (de gênero) como uma Aufhebung à moda de Butler, estou relacionando performatividade com o movimento dialético conservar e superar as normas, superação e conservação que se dão numa brecha, na ínfima possibilidade de diferença na repetição da norma, entendida nem como regra nem como lei, mas como normalização.
SANTY MITO, “DAVID”. FOTOGRAFÍA TOMADA DE HTTPS://REVISTAKINGMX.COM/2019/03/28/GEORGEX-VS-SANTY-MITO/
A terceira crítica muito comum é a de que a performatividade de gênero seria uma forma de ignorar a materialidade dos corpos, que vem tanto do campo do pensamento materialista quanto do campo das teorias sociológicas de gênero, mesmo aquelas que, não necessariamente tributárias do materialismo, entendem que o argumento do sexo anatômico biológico pesa sobre os corpos das mulheres como fator de limitação das suas possibilidades sociais, políticas, econômicas e sexuais. A hierarquia de gênero não poderia ser compreendida ou mesmo superada apenas a partir da concepção do sexo como discursivo. A esta crítica está articulada a quarta e última crítica que pretendo enfrentar, a ideia de que, ao propor a performatividade de gênero, Butler estaria esvaziando a identidade de gênero e, portanto, toda reivindicação identitária na política. Vou tentar refutar essas dois pontos de uma vez só porque me parece que os dois argumentos caminham juntos.
Em Bodies that matter, Butler insiste em dizer que seu objetivo não é ignorar a materialidade dos corpos, mas perguntar por que a materialidade do corpo não pode ser, ela também, construída. O contra-argumento insiste na ausência de fundamento natural para o binarismo de gênero. Aqui, numa espécie de segunda volta sobre os problemas de gênero, Butler fará da materialidade dos corpos o ponto de partida para o que chamo de interseccionalidade radical, em que os corpos estão carregados de inúmeros marcadores, como raça, classe, religião, local de nascimento, lugar de moradia, idade, orientação sexual, que vão além de sexo e gênero. Com isso, ela proporá um deslocamento da centralidade da categoria gênero como instrumento de crítica às discriminações na vida social, cultural e econômica, para pensar na heteronormatividade como elemento que constrói e orienta a materialidade dos corpos. Não se trata, portanto, de negar a política identitária por si mesma, mas, ao contrário, ampliá-la a ponto de abarcar todos os corpos carregados de marcadores de vulnerabilidade, precariedade e subalternidade, sem com isso pretender reconstituir uma universalidade. Quando o sujeito mulher deixa de ser a razão de ser do movimento feminista, a política passa a ser feita em torno de “fundamentos contingentes”, outra das proposições de Butler que também subscrevi, buscando pontos de luta em comum que possam ir além das diferenças, sem pretender qualquer tipo de consenso que, no limite, é sempre violento. Se em Bodies that matter ela estava tentando responder os que a criticavam por ignorar a materialidade dos corpos, em A Vida psíquica do poder, cujo subtítulo é teorias da sujeição, ela retoma um elemento de Problemas de gênero, o efeito do discurso sobre os sujeitos. Depois de passar por Hegel, Althusser e Nietzsche, Butler chega à noção foucaultiana de assujeitamento, na qual o sujeito se constitui na relação com o poder a que se submete, mas justamente ali onde o assujeita também o torna sujeito.
Passados quase 20 anos da publicação de Gender Trouble, acho que já podemos admitir que a filosofia política de Butler se desenvolveu com vistas a uma crítica ao projeto de normatividade como compreensão para diferentes formas de opressão, nas quais o gênero é apenas uma delas, opressão que visa separar as vidas que se tornarão mais ou menos precárias pelas políticas de Estado, as vidas que têm valor e as que não têm, as vidas vivíveis e as vidas matáveis. Mas para isso seria preciso compreender que a heteronormatividade não está restrita ao campo das escolhas de objeto sexuais, mas constitui o insuportável da normatividade. A performatividade (de gênero) é formulada então como mecanismo que responde a essa dupla injunção do poder, e responde funcionando do mesmo modo paradoxal: assujeitando e constituindo o sujeito na sua relação com a normas. Assim, talvez possamos admitir também que o pensamento da autora não esteja restrito ao campo do gênero, embora o campo do gênero não seja, ele mesmo, restrito, mas atravesse todas as questões contemporâneas da bio e da necropolítica.[28]
Lacunas temporais
Durante mais de 10 anos, entre 2003 e 2014, Problemas de gênero foi o único livro de Butler em português disponível no mercado editorial brasileiro. Seu segundo título traduzido foi O clamor de Antígona, cuja edição original era de 2001 e aqui foi publicado pela editora da UFSC em 2014. Um ano depois, em 2015, Butler veio ao Brasil participar de uma série de seminários e chegou surpreendendo quem estava prestando atenção apenas aos problemas da política identitária.[29] De fato, as palestras de Butler estiveram mais pautadas por temas recentes na sua obra e por seus desdobramentos há mais de duas décadas, nem sempre acompanhados pelas pesquisas brasileiras muito concentradas nos temas de gênero. O que era um abismo muito grande foi recuperado em pouco tempo. Em 2017, Butler volta ao país, desta vez como uma das organizadoras do seminário internacional Os fins da democracia: estratégias populistas, ceticismo sobre a democracia e a busca por soberania popular, promovido em conjunto pelo Sesc-SP, a Universidade de Berkeley, onde ela leciona, e a Universidade de São Paulo, onde tinha como principal interlocutor o professor Vladimir Safatle, importante leitor de Butler pelo menos desde a publicação de O cinismo e a falência da crítica,[30] livro em que dedica um capítulo ao debate sobre performatividade e normas de gênero.
Uma petição que arrecadou quase 400 mil assinaturas dizia que a filósofa não era bem-vinda ao Brasil. Protestos foram organizados em frente ao Sesc-Pinheiros, onde aconteceu o seminário, enquanto uma boneca era queimada na rua, lá dentro Butler discutia o que tem sido tema de sua obra há quase 20 anos, a necessidade de crítica à violência de Estado como forma de aprimorar os regimes democráticos.[31] A ocasião da sua segunda viagem ao Brasil serviu para impulsionar a tradução de outros dois livros da autora: A vida psíquica do poder e Caminhos divergentes, livro dedicado a recuperar de pensadores judeus como Emmanuel Lévinas e Walter Benjamin as proposições éticas de não-violência presentes no judaísmo e fazê-los dialogar com autores palestinos como Edward Said, performatizando a convivência entre judeus e palestinos que o texto postula. A ida de Butler ao campus da Unifesp para palestra de lançamento deste livro exigiu um es-quema de segurança com os mesmos critérios usados para chefes de Estado.
Na minha percepção, um dos problemas de leitura de Butler no Brasil está nas diferenças temporais entre os títulos originais e as traduções, que ainda prejudica o desenvolvimento das pesquisas de sua obra. As políticas de tradução estão diretamente ligadas à democratização do acesso aos textos e muitas vezes estão orientadas apenas por interesses comerciais. A tabela a seguir procura demonstrar essas diferenças de tempo, numa relação não exaustiva de todos os livros de Butler, observando ainda que me parecem estar em curso dois movimentos editoriais concomitantes: o de diminuir o espaço de tempo entre a publicação original e a tradução (itens 11 e 15) e o de recuperar obras importantes ainda não publicadas (itens 1, 3, 4 e 10).
TABELA 2
Quando escrevi a respeito de Antigona’s claim, meu interesse era a discussão acerca da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss e como, tomando Gayle Rubin como referência, Butler havia interrogado a centralidade do tabu do incesto na formação das estruturas elementares do parentesco.[32]
No debate contemporâneo a respeito do que é uma família, as relações heteronormativas estão na origem da discriminação a famílias chefiadas por mulheres, das experiências de parentalidade e das políticas de adoção de crianças para casais homoafetivos. Em 2016, pouco depois de o livro ser traduzido no Brasil, retomei sua leitura em curso no Programa de Pós-Graduação em Filosofia (IFCS/UFRJ),[33] avançando para o debate de Butler com a leitura de Hegel e de Lacan para a peça de Sófocles. Meu objetivo, então, era perseguir o tema da distribuição desigual do luto público,[34] tal qual aparece em Precarious Life e Quadros de guerra. Venho trabalhando com a ideia de que o problema do luto já estava em germe desde O clamor de Antígona, embora só tenha se desenvolvido depois do 11 de setembro, e que tem a função política de fazer a ligação entre a materialidade dos corpos carregados de marcadores interseccionais e a crítica à violência de Estado como argumento político.[35]
Considero necessário observar que Butler tem sido uma autora estudada no Brasil de forma inter e multidisciplinar.[36] Localizei 290 mestrados e 64 doutorados no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes numa busca por “Judith Butler”. Estas pesquisas e se valem da autora como referencial teórico e estão em diversas áreas, como Psicologia, Direito, Educação, Antropologia, Ciências Sociais, Comunicação, Estudos Literários, Linguística, Relações Internacionais e Filosofia. Neste resultado, encontrei duas teses e 12 dissertações com o nome de Judith Butler no título, que tomei como indicação de mestrados e doutorados de maior concentração em sua obra.
TABELA 3
Sete dos 13 trabalhos que citam o nome Judith Butler no título estão na área de Filosofia. Desse universo dos 13, gostaria de destacar alguns trabalhos, por razões distintas.
Primeiro, pelo pioneirismo, o doutorado defendido por Patrícia Porchat na Psicologia Clínica da USP em 2007. Ainda na USP, desta vez na Filosofia, Luisa Helena Torrano, defendeu mestrado em 2010 articulando Bultler e Foucault. Também pelo seu aspecto inaugural, considero necessário mencionar o mestrado de Djamila Ribeiro, defendido em 2015 na Filosofia da Unifesp. Na Psicologia da UFSC, o mestrado de Felipe Demetri, defendido em 2018, teve como objetivo discutir as categorias de vulnerabilidade e precariedade no pensamento da autora, buscando questões em Butler que fossem para além do gênero e dialogando de maneira muito próxima com o trabalho de Thaís de Bakker, que defendeu mestrado na Filosofia da UFRJ em 2018 se valendo da obra de Butler como instrumental teórico para a crítica à violência do Estado-nação.[37] A fim de ampliar as leituras de Butler para além do gênero, propus e coordenei, com a professora Magda Guadalupe dos Santos (PUC-MG/UEMG), o Simpósio Temático “Para além dos problemas de gênero na filosofia de Judith Butler”, com 40 resumos submetidos e 32 trabalhos aprovados para apresentação no 13º Congresso Mundos de Mulheres/Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, realizado na UFCS em 2017.
Depois de traçar esse panorama tão pessoal quanto político, e por isso mesmo cheio de escolhas e desvios localizados, gostaria de discutir um problema com o qual venho me debatendo desde que tomei a decisão de seguir o caminho de Butler e ampliar minha pesquisa para além dos problemas de gênero. Tenho insistido em não dividir a obra da autora em duas partes, a primeira dedicada “apenas” ao gênero e a segunda, mais ampla e, portanto, menos regional, o que serviria para confirmar que os problemas de gênero num lugar de saber que, embora transversal e multidisciplinar, nunca chegariam a alcançar estatuto de tema político. Todo debate sobre gênero é desde sempre político e o movimento da obra de Butler é justo o oposto disso: os problemas de gênero perpassam toda a sua filosofia, seja quando está tratando de distribuição desigual de luto público e percebe que a perda de certas vidas importa menos, o que termina por autorizar a violência contra elas; seja quando está propondo uma “[…] aliança centrada na oposição à violência de Estado e sua capacidade de produzir, explorar e distribuir condições precárias e para fins de lucro e defesa territorial”,[38] ou quando está interrogando a estrutura colonial da dominação de Israel sobre a Palestina.[39] Some-se a isso a crescente influência do trabalho de sua companheira, Wendy Brown,[40] nos seus textos mais recentes, e teremos em Butler uma crítica aguda do neoliberalismo e de suas formas de produzir precariedades em políticas voltadas a tornar ainda mais vulneráveis aqueles cujas vidas já são tomadas como matáveis desde o nascimento.
É por esse caminho de crítica ao neoliberalismo que ela retoma o debate sobre precariedade e vulnerabilidade em Corpos em aliança[41] e adere a um tema caro ao trabalho de Brown (2006), a desdemocratização, que me parece oferecer um desafio a mais na leitura da filósofa no Brasil. Butler defende uma democracia radical como instrumento de enfrentamento da violência de Estado, maior e mais aguda contra gêneros não inteligíveis na ordem normativa. A principal tarefa de uma democracia radical seria enfrentar, confrontar, interrogar, questionar, fazer oposição à violência de Estado, esta que se justifica em função da defesa dos territórios, lucra com essa atividade e se fundamenta na força de exploração da precariedade dos corpos. Com Butler, tenho argumentado que só haverá democracia (radical) quando e se qualquer corpo – independentemente de seus marcadores – não estiver desigualmente exposto à violência estatal, institucional e de mercado. Um dos pontos em debate na filosofia de Butler quando critica à violência de Estado é a “ontologia do corpo”, noção com a qual se pode pensar a distribuição desigual da precariedade da vida a partir de marcadores de gênero, sexualidade e as sobreposições entre raça e classe.
Nessa ontologia corporal, passa a ser preciso pensar de que forma a democracia vem sendo mobilizada a fim de manter a separação entre corpos que merecem viver e corpos que merecem morrer, considerando que os corpos de mulheres, gays, lésbicas, jovens negros, moradores de favelas e periferias, pessoas trans, são corpos marcados e expostos à violência de Estado, que detém dois privilégios: o de criar e o de manter indeterminada a fronteira entre quem pode ou quem não pode viver. Restaria como questão tentar nomear essa violência cuja origem não se limita a uma única fonte – Estado, capital ou direito – nem à combinação dessas três fontes, mas pode emergir de qualquer lugar contra qualquer um.
Quando posto no contexto brasileiro, o debate em torno da defesa da democracia radical, tal é qual elaborada por Butler, expõe complexidades políticas e históricas próprias. O Brasil carrega no seu cotidiano imenso manancial de violência, discriminação, preconceito, ódio, arbitrariedade, fragilidade institucional, de tal modo que ao pesadelo brasileiro de expansão de forças de extrema-direita se acrescenta o fracasso de um processo de redemocratização incompleto.[42] Encontrar caminhos para a defesa de uma sociedade mais igualitária passa por uma política pública de luto e de memória, a respeito da qual a filosofia de Butler pode ser de grande valia. No entanto, ainda cabe a nós, pesquisadores e pesquisadoras, localizar esses saberes no contexto político e social brasileiro, a partir de uma perspectiva crítica que ofereça chaves de inteligibilidade para questões que nos afetam.
Para concluir, gostaria de retomar Haraway, quando ela argumenta que “[…] precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro”[43]. Num momento em que todas as perspectivas de futuro parecem estar capturadas – seja pelas forças políticas de extrema-direita ganhando espaço em diferentes países do mundo, seja com o aprofundamento de todos os indicadores de precarização da vida – a mim parece urgente fazer dessa possibilidade de futuro uma tarefa, seguindo de perto os passos de Edson Teles, para quem, no Brasil, fazer filosofia é sempre fazer filosofia política.
Bibliografia
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- Caminhos Divergentes. Tradução: Bettoni, Rogério. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
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- Derrida, Jacques. “Os fins do homem”. Tradução: Costa, Joaquim Torres; Magalhães, António M. In: Margens da filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1991. [Marges de la Paris: Minuit, 1972]
- Faludi, Susan. Backlash – o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Tradução: Fondelli, Mario. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. [Backlash – the undeclared war against american Crown Publishers, 1991.]
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- Hegel, F. A ciência da ló 1. A doutrina do ser. Tradução: Ilber, Christian G.; Miranda, Marloren L.; Orsini, Federico. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São
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- Rodrigues, “Butler e a desconstrução do gênero”– Resenha, Revista de Estudos Fem. vol.13 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2005.
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- Safatle, Vladimir, O Cinismo e falência da crítica: Boitempo, São Paulo,
- Teles, Edson, Democracia e Estado de Excessão: Transição e Memória Política no Brasil e na África do sul: Editora Fap-Unifesp, 2015.
Notas
[1] The knowing self is partial in all its guises, never finished, whole, simply there and original; it is always constructed and stitched together imperfectly, and therefore able to join with another, to see together without claiming to be another. Cf. Haraway, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, Vol. 14, No. 3, 1988, p. 596; e Haraway, Donna., Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, 1995, pp. 7-41. Tradução: Corrêa, Mariza 1995, p. 26.
[2] Este foi publicado previamente e só em português na revista En Construção da UERJ e cedido pela autora e pela revista para esta publicação bilíngüe. [Nota dos editores]
[3] Trabalho integrante da pesquisa de pós-doutorado sob a supervisão de Edson Teles (Unifesp), a quem agradeço a interlocução nesses anos de trabalho conjunto. Este texto não seria possível sem a firme e afetuosa insistência de Suely Aires, com quem me alegra estar formando laços de saberes e a quem dedico o texto.
Este artigo também faz parte do projeto de pesquisa “Judith Butler: do gênero à violência de estado”, Projeto Jovem Cientista da Faperj (2018/2020).
[4] Foi por sugestão da amiga e professora Maria Teresa Citeli, ainda nos anos 1990, que tomei contato com a obra de D. Haraway. Agradeço a ela tantos anos de conversas, trocas afetivas e intelectuais, e debates sobre feminismo e ciência, campo de pesquisa sobre o qual eu nada saberia se não fosse a nossa amizade.
[5] Haraway, Saberes localizados: a questão da…, p. 33.
[6] Estou usando Problemas de gênero quando cito a tradução brasileira e Gender Trouble sempre que me refiro à edição original.
[7] Ibidem, p. 24.
[8] Considero exemplar o diagnóstico da autora: “(…) foi a imprensa a primeira a apresentar e resolver, diante de uma grande audiência, o paradoxo da vida das mulheres, o paradoxo que se tornaria tão fundamental para o backlash: as mulheres conseguiram tanto e, mesmo assim, sentem-se tão insatisfeitas; a razão para todo este sofrimento devem ser as realizações do feminismo, e não a resistência da sociedade contra estas realizações parciais”. (Faludi, Susan. Backlash – o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Tradução: Fondelli, Mario. Rio de Janeiro: Rocco, 2001[1991], p. 95 (tradução modificada por mim).
[9] A reportagem que inspirou a pesquisa de Faludi foi uma capa da revista Newsweek que, apesar de usar dados inconsistentes, afirmava que mulheres na faixa dos 30 anos não tinham quase nenhuma chance de casar. “The mariage crunch – if you’re a single woman, here are your chances of getting married”, Newsweek, 1986.
[10] Uma das melhores refutações a essa constatação pode ser encontrada em artigo da feminista Nancy Fraser (2009)
[11] “ ‘Problema’ talvez não precise ter uma valência tão negativa. No discurso vigente na minha infância, criar problema era precisamente o que não se devia fazer, pois isso traria problema para nós. A rebeldia e sua repressão pareciam ser apreendidas nos mesmos termos, fenômeno que deu lugar a meu primeiro discernimento crítico da artimanha sutil do poder: a lei dominante ameaçava com problemas, ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los”. Butler, Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Tradução: Aguiar, Renato. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 7, grifo meu.
[12] Butler Subjects of Desire – hegelian reflections in twentieth-century France. Columbia: Columbia University Press, 2a. Edição, p. xiv
[13] Butler, Butler, Judith. Gender as Performance. Entrevista com Lynne Segal e Peter Osborne. RP 067, 1994. s/p. Na mesma ocasião, ela afirma: “Me parece que combater a dualidade sexo/gênero através da teoria queer, dissociando essa teoria do feminismo, é um grande erro”, trecho que citei na resenha de Problemas de gênero, a que me permito referir. Cf. Rodrigues, “Butler e a desconstrução do gênero” – Resenha, Revista de Estudos Fem. vol.13 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2005. Tradução minha.
[14] Sobre a construção e a desconstrução do conceito de gênero, permito-me referir a dois artigos: Rodrigues & Heilborn, 2013; Heilborn & Rodrigues, 2018, e agradecer as décadas de debate com a professora e amiga Maria Luiza Heilborn sobre o tema.
[15] Gostaria de destacar esse trecho de Problemas de gênero que considero contribuir para a compreensão do argumento de Butler a que me refiro: “a ideia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Neste caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino.” Butler, Problemas de gênero…, p. 26.
[16] Mais recentemente, passei a trabalhar com o termo heteronormatividade, designação mais ampla para os padrões normativos que dividem as formas de vida entre vivíveis e matáveis e demonstra que a relação entre sexualidade e gênero é uma das questões, mas não a única, a compor o rol de discriminações na vida social.
[17] Aqui gostaria de mencionar o trabalho de Berenice Bento, cuja potência de crítica ao termo queer está associado, na maneira como leio, a uma crítica igualmente potente em relação à colonialidade das práticas acadêmicas no Brasil. Destaco essa passagem de uma entrevista concedida por ela aos pesquisadores/as Felipe Padilha e Lara Faciolib: “Quando minha tese foi publicada, eu fui carimbada com o selo de teórica queer. Isso, para mim, foi uma surpresa, porque eu não me reivindicava assim, foi de fora para dentro. Nunca foi um lugar que me deixou muito confortável, tampouco tranquila. Primeiro, eu não gosto da palavra queer. O que é queer? Em uma ocasião de trabalho, eu perguntei a uma pessoa estadunidense, via e-mail, se ela era queer. Ela se sentiu ofendida e insultada. Nunca mais nos falamos. Já no Brasil, se você fala que é queer, a grande maioria nem sabe do que se trata. “Queer”, teórica queer, não me provoca conforto. Não tem nenhum sentido para nós. No contexto norte-americano, o objetivo foi dar um truque na injúria, transformando a palavra queer (bicha) em algo positivo, em um lugar de identificações. Qual a potência do queer na sociedade brasileira? Nenhuma. Se eu falo transviado, viado, sapatão, traveco, bicha, boiola, eu consigo fazer com que meu discurso tenha algum nível de inteligibilidade local. O próprio nome do campo já introduz algo de um pensamento colonizado que não me agrada de jeito nenhum.” Bento, Berenice. É o queer tem pra hoje? Conversando sobre as potencialidades e apropriações da Teoria Queer ao Sul do Equador. Áskesis, v. 4, n. 1, janeiro/junho, 2015, p. 147
[18] Destaco o exemplar texto de apresentação do livro no site da editora (http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_ livro=28882) : “Neste livro inspirador, que funda a Teoria Queer, Judith Butler apresenta uma crítica contundente a um dos principais fundamentos do movimento feminista: a identidade.” A respeito do tema também gostaria recuperar as origens epistemológicas da teoria queer: “(…) teóricos como Eve K. Sedgwick, David M. Halperin, Judith Butler e Michael Warner começaram a empreender análises sociais que retomavam a proposta de Foucault, ao estudar a sexualidade como um dispositivo histórico do poder que marca as sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em sistemas de unidade e regulação social”. Miskolci, “A teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização”. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, no. 21, jan/jul, 2009, p. 154.
[19] Cf. Derrida, Jacques. “Os fins do homem”. Tradução: Costa, Joaquim Torres; Magalhães, António M. In: Margens da filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1991. [Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972]
[20] Observo que a maioria dos títulos e, sobretudo, dos subtítulos dos livros de Butler são muito precisos em relação ao tema que a autora pretende debater (ver Tabela 2).
[21] Cf. Rodrigues Carla, O sonho dos incalculáveis: coreografias do feminino e do feminismo a partir de Jacques Derrida. Mestrado em Filosofia, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2008.
[22] Cf. Rodrigues, Carla, Rastros do feminino: sobre ética e política em Jacques Derrida. Doutorado em Filosofia PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2011.
[23] Tenho discordado, em outros lugares, do argumento de que gênero não diga respeito à teoria psicanalítica, e o faço em nota por considerar que este não é o tema central do artigo.
[24] Ressalto que há exceções e esforços de diálogo com a obra de Butler, porexemplo, no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos; na Letra Freudiana, onde estabeleci algumas interlocuções, em especial com Claudia de Moraes Rego; no Outrarte/Unicamp, onde tive a oportunidade de participar de três encontros e estabelecer potentes interlocuções com as queridas Flavia Trocoli (UFRJ) e Suely Aires (UFBA), além da oportunidade de dialogar com as pesquisas de Pedro Ambra, Rafael Cossi e Rafael Cavalheiro. Pesquisadores como Patrícia Porchat (USP), Christian Dunker (USP) e Gilson Ianini (UFMG), editor de duas traduções de Butler no Brasil, são interlocutores que participam do percurso desta recepção de Butler na teoria psicanalítica.
[25] Judith Butler foi uma das conferencistas do 10º. Encontro da SIPP em 2018 em NY com a palestra “Destructiveness beyond pleasure” (http://www.sipp-ispp.org/FilesContent/pages/MultiMedia/colloquepulsions_de_mort_ici_et_ailleurs2702.pdf), em sessão coordenada pela professora Monique David-Ménard (Un. Paris-VII).
[26] Estou usando paradigma a partir da perspectiva do filósofo Giorgio Agamben (2008), que se vale do paradigma como método com o objetivo de tornar certos fenômenos inteligíveis. Em última análise, argumenta ele, o paradigma depende da possibilidade de produzir, no interior de um arquivo cronológico em si inerte, planos de clivagem que permitem torná-los legíveis. A figura da drag queen é paradigmática na medida em que permite tornar compreensível o fenômeno da artificialidade do gênero.
[27] Aqui gostaria de abordar uma das inúmeras dificuldades do termo alemão Aufhebung, cujas traduções têm desafiado filósofos em diferentes idiomas. Paulo Meneses, tradutor da Fenomenologia do Espírito pela Editora Vozes, optou por suprassunção, termo que tem se estabelecido no Brasil, apesar de não ser consensual. O tradutor Emmanuel Martineu, que verteu do alemão para o francês o curso de Heidegger sobre a Fenomenologia do Espírito, nega soluções anteriores a ele, muitas das quais exerceram influência sobre as traduções brasileiras. Suprimir (supprimer), superar (surmonter), ultrapassar (dépasser), elevar (enlever), subsumir (sursumer) e suspender (relever), esta última proposta por Derrida, são algumas das hipóteses que encontramos também nos textos de e acerca de Hegel no Brasil. Martineu propõe a tradução de Aufhebung por assumer (assumir ou aceitar) e por assomption (assunção). Nessas propostas, ele retoma a famosa passagem de A ciência da lógica, quando Hegel escreve: “superar [Aufheben] e o superado (o ideal) é um dos conceitos mais importantes da filosofia, uma determinação fundamental que pura e simplesmente retorna por todos os lados e cujo sentido tem de ser apreendido de modo determinado e ser particularmente distinguido do nada. – O que se supera, não se torna, por isso, nada. (…) Assim, o superado é algo ao mesmo tempo conservado, que apenas perdeu sua imediatidade, mas, por isso, não foi aniquilado. – As duas determinações indicadas do superar podem ser apresentadas, em termos lexicais, como dois significados dessa palavra. Mas, nesse caso, surpreendente deveria ser o fato de que uma língua chegou a empregar uma e mesma palavra para duas determinações opostas”. Hegel, F. A ciência da lógica. 1. A doutrina do ser. Tradução: Ilber, Christian G.; Miranda, Marloren L.; Orsini, Federico. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2016, p. 98.
[28] Cf. Mbembe, Achille, Mbembe, Achille. Necropolítica – biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução: Santini, Renata. São Paulo: N1-Edições, 2018.
[29] Butler cumpriu uma extensa agenda de compromissos. Em Salvador, fez a conferência de abertura do II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na UFBA; em São Paulo, esteve num seminário no campus de Marília da Unesp, e fez a conferência principal do I Seminário Queer – Cultura e Subversões da Identidade, promovido pela revista Cult e pelo Sesc-Vila Mariana, que oferece on-line a íntegra de todas as palestras [http://bit.ly/2ROD9Xg]
[30] Cf. Safatle, Vladimir, Cinismo e falência da crítica: Boitempo, São Paulo, 2008.
[31] As informações foram recuperadas no trabalho de Aléxia Bretas (2018), a quem agradeço a gentileza de ceder o artigo apresentado no XVIII Encontro Nacional da ANPOF e ainda no prelo.
[32] Cf. Rubin, Gayle. “Tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”, In: Políticas do sexo. Trad. DIAS, Jamile Pinheiro. São Paulo: Ubu, 2017
[33] A criação da linha de pesquisa “Gênero, raça e colonialidade”, em 2016, no PPGF, fortaleceu as pesquisas sobre Butler na filosofia, mas não apenas. Ampliou as possibilidades de diálogo entre gênero e filosofia, a leitura de feministas latino- americanas e trabalhos sobre feminismo decolonial. Hoje, o PPGF conta com três laboratórios de pesquisa voltados para a área de Filosofia e Gênero: Antígona – laboratório de filosofia e gênero, coordenado pela professora Susana de Castro Amaral Vieira, também a primeira coordenadora do GT Filosofia e Gênero na Anpof, criado em 2016; o Núcleo de Ética Aplicada, coordenado pela professora Maria Clara Dias e pioneiro dentro do PPGF na abordagem de temas relacionados a gênero; e o laboratório Escritas – filosofia, gênero e psicanálise, coordenado por mim desde 2015.
[34] Rodrigues, Carla “A função do luto na filosofia política de Judith Butler”. In: Correia, A.; Haddock-lobo, R.; Silva, C. V. (orgs.). Deleuze, desconstrução e alteridade. Coleção XV. II Encontro ANPOF: ANPOF, p. 329-339, 2017.
[35] Esse é o principal objetivo do projeto de pesquisa “Judith Butler: do gênero à violência de estado”, com o qual fui contemplada no programa Jovem Cientista do Nosso Estado/Faperj (2018-2020), de que esse artigo faz parte.
[36] Agradeço a ajuda da querida Itala Maduell na pesquisa no banco de dados da Capes.
[37] Apenas a título de comparação, fiz uma pesquisa no catálogo de trabalhos da Capes, valendo-me do mesmo recurso de buscar por “Judith Butler” e analisando os títulos. Localizei 33 teses e dissertações que us.am o prefixo trans (transgênero, transexual, transsexualidade, pessoas trans) em seus títulos e 10 teses e dissertações que se valem do termo queer.
[38] Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto? Tradução: Lamarão, Sérgio; Cunha, Arnaldo. Rio de Janeiro: Record, 2015 p. 55
[39] Cf. Butler, Caminhos Divergentes. Tradução: Bettoni, Rogério. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017. 2017 [2012]
[40] Agradeço a Mario Pecheny a sugestão de leitura das obras de Brown e a indicação da importância de seu trabalho no pensamento de Butler.
[41] Butler, Corpos em aliança e a política das ruas. Tradução: Miguens, Fernanda Siqueira. Rio de Janeiro: Record, 2018. [2015]
[42] Cf. Teles, Edson, Democracia e Estado de Excessão: Transição e Memória Política no Brasil e na África do sul: Editora Fap-Unifesp, 2015.
[43] Haraway, Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial,. Cadernos Pagu, n. 5, 1995, pp. 7-41. Tradução: Corrêa, Mariza, p. 16.